A ENDEMIA ESTRUTURAL DA VIOLÊNCIA POLICIAL NO BRASIL

5 de Julio de 2024
A ENDEMIA ESTRUTURAL DA VIOLÊNCIA POLICIAL NO BRASIL
Foto de Joel Santos - Pexels

A violência policial no Brasil é um problema crônico. Casos como Honorato vs. Brasil e Tavares Pereira vs. Brasil ilustram a gravidade, com execuções extrajudiciais e impunidade. A Corte Interamericana condenou o Brasil, destacando a necessidade de maior transparência e responsabilização das ações policiais.

A violência policial no Brasil é questão de extrema gravidade e tem recebido condenações não apenas no âmbito nacional, mas também em instâncias internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Casos emblemáticos, como Honorato e Outros vs. Brasil e Tavares Pereira vs. Brasil, ilustram a profundidade desse problema endêmico que afeta a efetivação dos direitos humanos no país, representando exemplos contundentes da violência policial no Brasil e da impunidade que muitas vezes acompanha esses crimes.

Edson Honorato e outras 12 pessoas foram mortas por policiais militares em 1997, durante a denominada “Operação Castelinho”, em São Paulo, em circunstâncias que apontaram para uma execução extrajudicial. A investigação foi negligente, e resultou em sentença absolutória, com recursos rejeitados. Quanto às ações civis movidas pelos familiares, quatro foram julgadas favoravelmente, mas apenas uma família recebeu de fato a indenização. O caso destacou a prática sistemática de uso excessivo da força letal pelas forças de segurança e a ineficácia do sistema de justiça em responsabilizar os agentes envolvidos, investigados por sua própria classe.

A condenação da Corte Interamericana incluiu como medidas de reparação mecanismos de transparência para a atuação policial, como a adoção de tecnologia para localização de veículos, o afastamento de qualquer policial envolvido em uma morte durante uma operação e o afastamento da competência da Polícia Militar na investigação de atos cometidos contra civis. Além disso, determinou que seja possível reabrir investigações arquivadas quando futuras condenações entenderem que a investigação realizada foi insuficiente.

Outro tempo-espaço, a mesma violência: José Tavares Pereira, militante do MST, foi assassinado em 2000 no Paraná, durante a interceptação de veículos que se dirigiam a uma manifestação que sequer aconteceu. Similarmente ao caso Honorato, as investigações foram marcadas por falhas e imparcialidade, sofrendo arquivamentos apressados. A família de Tavares Pereira lutou por justiça durante anos, enfrentando ameaças e intimidações.

A Corte Interamericana condenou o Estado brasileiro, reconhecendo a responsabilidade do Estado na proteção insuficiente da vida e na falta de investigação adequada. Como medidas de reparação, determinou a proteção do monumento Antônio Tavares Pereira no local em que está edificado, a inclusão de conteúdo específico sobre o tema na grade curricular de formação da força policial e a adequação do ordenamento jurídico acerca da competência da Justiça Militar.

Em ambos os casos, a Corte condenou o Brasil a fornecer tratamento psicológico aos familiares das vítimas, a pagar indenização por dano material e imaterial e a realizar um ato público reconhecendo a responsabilidade internacional.

A violência policial no Brasil é um fenômeno multifacetado com raízes históricas e estruturais profundas. Desde os tempos coloniais, a força policial foi utilizada como um instrumento de repressão e controle social, particularmente contra as populações marginalizadas. Esse histórico deixou um legado de práticas autoritárias e militarizadas que perduram até hoje.

Um dos maiores desafios no combate à violência policial é a cultura de impunidade. Casos como os de Honorato e Tavares Pereira são exemplos claros de como a falta de responsabilização perpetua a violência. Muitas vezes, os policiais envolvidos em abusos não são investigados de maneira adequada, e quando são, enfrentam processos que raramente resultam em condenações. Esse ciclo de impunidade não apenas mina a confiança da população nas instituições de justiça, mas também encoraja a perpetuação dos abusos. Essa realidade já foi escancarada anteriormente pelo Caso Favela Nova Brasília vs. Brasil, em que a Corte exigiu a adoção, pelo Rio de Janeiro, de medidas para redução da letalidade e da violência policial. Nesse sentido, a condenação dialoga com a ADPF nº 635, na qual o STF já deferiu cautelarmente medidas estruturantes para a redução dos abusos policiais no estado.

A estrutura militarizada das forças policiais brasileiras contribui significativamente para a violência. A Polícia Militar, responsável pelo policiamento ostensivo, opera sob uma lógica de combate, muitas vezes tratando cidadãos como inimigos. Essa abordagem agressiva é particularmente evidente nas favelas e comunidades periféricas, onde a presença policial é frequentemente associada à violência e ao medo.

A violência policial no Brasil se manifesta de várias formas, desde abordagens truculentas até execuções sumárias. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostram que, em 2023, mais de 6.400 pessoas foram mortas por policiais no país — 17 pessoas por dia —, um dos números mais altos do mundo. Essas mortes ocorrem desproporcionalmente entre jovens negros e pobres, revelando um recorte racial e socioeconômico na violência estatal.

Além das execuções, muitos cidadãos são vítimas de abordagens agressivas e tortura durante detenções. Relatórios de organizações como a Human Rights Watch e a Anistia Internacional frequentemente destacam casos de tortura em delegacias e centros de detenção, onde os direitos básicos dos detidos são sistematicamente violados.

As execuções extrajudiciais são talvez a forma mais extrema de violência policial. Policiais envolvidos nessas ações frequentemente alegam legítima defesa, mas investigações mostram que muitos desses casos são assassinatos premeditados. A prática de “autos de resistência”, onde as mortes são justificadas como reação a um suposto ataque, tem sido amplamente criticada por mascarar execuções sumárias. O registro das mortes por esse termo, ou pelo sinônimo “resistência seguida de morte”, dita a tendência das investigações, pressupondo que as pessoas executadas teriam praticado atividades criminosas e que a força policial age em legalidade ao reagir agressivamente. Esse entendimento é reforçado pela Corte Interamericana.

A violência policial representa uma grave violação dos direitos humanos, afetando diretamente o direito à vida, à integridade física e à segurança pessoal. A impunidade, que caracteriza muitos desses casos, compromete a justiça e perpetua um ciclo de violência e desconfiança. As populações mais afetadas pela violência policial — jovens, negros e pobres — enfrentam uma estigmatização contínua. Essas comunidades são frequentemente tratadas com suspeita e desconfiança, exacerbando as desigualdades sociais e perpetuando a marginalização.

Para enfrentar a violência policial de forma eficaz, é necessário um conjunto de ações abrangentes que incluam reformas institucionais, mudanças culturais e uma participação ativa da sociedade civil.

É fundamental o investimento em treinamento contínuo para os policiais, com ênfase em direitos humanos e capacitação para aplicar técnicas de mediação de conflitos, além da promoção de uma cultura de respeito aos direitos humanos dentro das forças de segurança. Outrossim, as corregedorias e os órgãos de controle externo, como o Ministério Público, precisam estar fortalecidas, para garantir a investigação imparcial e a responsabilização dos abusos. Igualmente, as operações policiais devem ocorrer com transparência e comunicação eficaz, permitindo a participação da sociedade civil, incluindo os movimentos sociais, ONG e Conselhos Comunitários.

Assim, a violência policial no Brasil é problema endêmico, que requer uma abordagem multifacetada para ser resolvido. Os casos de Honorato e Tavares Pereira são exemplos dolorosos da necessidade de reformas urgentes e abrangentes. Somente através de mudanças institucionais, culturais e da participação ativa da sociedade civil poderemos avançar na construção de uma polícia que respeite os direitos humanos e sirva verdadeiramente à população.

A luta contra a violência policial é, em última análise, uma luta pela dignidade humana e pela construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Cada passo dado nessa direção é um avanço para garantir que todos os brasileiros possam viver com segurança e dignidade, livres do temor da violência daqueles que deveriam protegê-los.

Citación académica sugerida: Fachin, Milena Girardi. A Endemia Estructural da Violência Policial no Brasil. Agenda Estado de Derecho, (fecha de publicação). Disponível em: https://agendaestadodederecho.com/a-endemia-estrutural-da-violencia-policial-no-brasil/

Palabras clave: Brasil; Sistema interamericano; Violência Policial; Direitos Humanos.

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ACERCA DE LA AUTORA
Melina Girardi Fachin

é professora associada do curso de graduação em Direito e docente permanente do curso de pós-graduação Stricto Sensu em Direito – Mestrado e Doutorado da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutora em Direito Constitucional, com ênfase em direitos humanos, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP.) Visiting researcher da Harvard Law School. Mestre em Direitos Humanos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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Doctor en Derecho por la Universidad Complutense de Madrid. Especialista en Derecho Constitucional por la Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), y en Derecho Constitucional y Ciencia Política por el Centro de Estudios Políticos y Constitucionales (Madrid). Licenciado en Derecho por la Universidad Autónoma de Guerrero (México). Es Investigador Nacional nivel I del Sistema Nacional de Investigadores del Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología (CONACYT, México). En representación de México es miembro del Grupo de Justicia Constitucional y Derechos Fundamentales del Programa Estado de Derecho para Latinoamérica de la Fundación Konrad Adenauer.