“Mães de Acari”: visibilização da violência policial contra mulheres pelo caso Leite de Souza e outros vs. Brasil

19 de Marzo de 2025
“Mães de Acari”: visibilização da violência policial contra mulheres pelo caso Leite de Souza e outros vs. Brasil
Créditos Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

O Brasil foi novamente condenado na Corte IDH por questões relacionadas à violência policial. Que perspectivas de mudança a sentença pode trazer?

O caso Leite de Souza e outros vs. Brasil contribui para visibilizar a violência policial que atinge impunemente mulheres pobres e negras, em abordagem com perspectiva de gênero. Porém, a efetiva transformação desse quadro institucional exige o cumprimento das obrigações determinadas na sentença interamericana.

Em sua mais recente condenação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), o Brasil foi chamado a enfrentar a violência policial com recorte de gênero. Nessa oportunidade, ressaltou-se a atuação das milícias, organizações clandestinas integradas por policiais agindo na ilegalidade. Em 1990, a milícia “Cavalo Corredor” foi responsável pelo desaparecimento forçado de onze jovens da Favela de Acari, o que ficou conhecido como “Chacina de Acari”. Dentre eles, uma mulher e duas adolescentes foram vítimas de violência sexual. Seus corpos nunca foram encontrados.

Diante da falta de diligência nas investigações, as mães criaram o movimento “Mães de Acari”, passando a investigar de forma independente o paradeiro de seus filhos e filhas e publicamente exigir justiça. Em 1993, duas de suas integrantes foram assassinadas (Edmea Euzébio e Sheila Conceição, mãe e prima de uma das vítimas), crime que também ficou sem a devida investigação, responsabilização e punição.

A violência policial contra mulheres no Brasil havia analisada no caso Favela Nova Brasília (2017), em que uma operação policial em 1995 submeteu três jovens à violência sexual praticada por policiais. Não houve a devida investigação e ninguém foi responsabilizado. Nesse caso, contudo, a Corte IDH ficou devendo a perspectiva de gênero.

Em ambos os casos, a violência sexual, o desaparecimento forçado e os assassinatos em si estiveram fora do alcance jurisdicional da Corte, que só pode responsabilizar o Estado por ocorrências posteriores ao reconhecimento de sua jurisdição contenciosa. O Brasil promoveu esse reconhecimento a partir de dezembro de 1998.

Contudo, a sentença do caso Leite de Souza foi além da responsabilização do Estado pela falta de investigação e punição dos responsáveis, como se verificou no caso Favela Nova Brasília. Promoveu análise da discriminação interseccional que acometeu as vítimas, mediante a aplicação da perspectiva de gênero, ou seja, em consideração da condição feminina, em intersecção com a questão racial e social, que coloca as vítimas em especial condição de vulnerabilidade.

Ao analisar o desaparecimento forçado, a Corte IDH salientou que meninas e mulheres são especialmente vulneráveis em virtude da “discriminação histórica” que lhes sujeita à violência sexual. Por força do artigo 7.b da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (“Convenção Belém do Pará”) em consonância com os artigos 8 e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos, determinou que “a notícia de um sequestro ou do desaparecimento de uma mulher deve ativar o dever de devida diligência reforçada para o Estado” pelo risco de violência sexual. A negligência estatal nesse caso violou o direito humano à devida diligência reforçada e ao prazo razoável do processo.

Vale salientar não há dados estatísticos que permitam avaliar a violência sexual contra mulheres praticada por policiais. O Atlas da Violência elaborado pelo IPEA não informa sobre essa modalidade de violência, embora ateste o recorte racial. Além da falta de dados institucionais, suspeita-se uma subnotificação, pois as vítimas precisariam recorrer ao próprio aparato policial para denunciar a violência sofrida. Embora a Corte IDH tenha condenado o Brasil a elaborar um banco de dados sobre violência contra as mulheres no caso Márcia Barbosa e outros vs. Brasil, esta obrigação permanece incumprida.

Também a violência e discriminação sofridas pelas mulheres que integraram o movimento “Mães de Acari” foram visibilizadas pela sentença. Ela denunciou a estigmatização e o preconceito com que foram tratadas pelos policiais, atribuindo-lhes a alcunha de “mães de delinquentes”. Segundo a sentença, o emprego de estereótipos de gênero contribui para a negligência na investigação, afeta a objetividade de investigadores, influencia sua percepção acerca do ato de violência em si e interfere na credibilidade das testemunhas e da vítima.

Precisamente em razão da discriminação interseccional sofrida por essas “mulheres buscadoras”, considerado seu papel de defensoras de direitos humanos, caberia ao Estado um especial dever de respeito e proteção. Segundo Akotirene, em circunstâncias como a do caso Leite de Souza “as mulheres  negras sucumbem aos ativismos comunitários voltados menos para si, enovelados pelo padrão moderno no qual suas identidades são revertidas às de mães solteiras, chefas de família desestruturadas, “mulheres da paz” efetivas no resgate de jovens criminosos”. Diante desse quadro, a sentença reconheceu que essas mulheres tiveram negado seu direito a um recurso efetivo (artigos 8.1 e 25, CADH) em virtude de discriminação por seu gênero, raça, e origem social.

Em resposta a essas violações, a Corte IDH exerce uma função transformadora, buscando afastar os entraves que impedem o Estado de cumprir com seus compromissos constitucionais e convencionais – dentre os quais a igualdade de gênero. Para tanto, determinou a adoção de um protocolo de investigação de supostos casos de violência policial com enfoque de gênero, infância e interseccionalidade, incluindo medidas de devida diligência reforçada, e a participação das vítimas ou familiares durante as investigações e os processos penais. Essa medida aproveita também ao caso Favela Nova Brasília, cuja violência sexual permanece pendente de solução. A exigência do protocolo de investigação com perspectiva de gênero representou um importante avanço. 

Ademais, a Corte determinou a tipificação penal do crime de desaparecimento forçado – obrigação que havia sido determinada (e ainda incumprida) no caso Gomes Lund e outros (“Guerrila do Araguaia”), de 2012. Esta tipificação deverá englobar um dever especial de diligência e circunstâncias agravantes quando as vítimas foram meninas ou mulheres, segundo o artigo 7.1,b da Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, interpretado mediante perspectiva de gênero.

Ainda, a sentença demandou a elaboração de um diagnóstico sobre a atuação das milícias no Rio de Janeiro, por meio de grupo interinstitucional, com propostas administrativas, judiciais, legislativas e policiais, para o enfrentamento dessas organizações. A preocupação da Corte IDH foi a impunidade que acoberta a permanente vitimização dos grupos vulneráveis, de modo a oprimir e silenciar as vítimas.

Finalmente, entre outros pontos, a sentença determinou a obrigação de investigar o desaparecimento forçado, a violência sexual e as mortes sem aplicação de anistias ou prescrição, a construção de um memorial para preservar a luta das “mães de Acari”, no Bairro de Acari, no Rio de Janeiro, e o pagamento de indenizações em valores exemplares. Quanto a esse tópico, destaca-se reunião havida entre o Ministério dos Direitos Humanos, o Ministério da Igualdade Racial e representantes das vítimas, em janeiro desse ano, para tratar dos pagamentos.

A sentença do caso Leite de Souza exerceu o importante papel de visibilizar e buscar enfrentar a discriminação e a violência policial contra as mulheres no Brasil. Trata-se de um inegável avanço e impulso transformador para superar práticas institucionais que mantém mulheres negras e pobres na condição de “marginais”, negando-lhes respeito e proteção. Vencer essa realidade, contudo, exigirá – minimamente – que o Estado cumpra com as medidas determinadas a fim de interromper ciclos contínuos de violência.

Citação acadêmica sugerida: Olsen, Ana Carolina Lopes.“Mães de Acari”: visibilização da violência policial contra mulheres pelo caso Leite de Souza e outros vs. Brasil , 2025/03/19. Disponível em: https://agendaestadodederecho.com/maes-de-acari-visibilizacao-da-violencia-policial-contra-mulheres-pelo-caso-leite-de-souza-e-outros-vs-brasil/

Palavras-chave: Direitos humanos, violência policial, interseccionalidade.

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ACERCA DE LA AUTORA
Ana Carolina Lopes Olsen

Estágio de pós-doutorado em curso na PUC PR, apoiada pela Fundação Araucária e com bolsa do CNPq, sobre cumprimento de sentenças interamericanas sobre discriminação contra mulheres. Doutora em Direito pela PUC PR, na linha de pesquisa Justiça, Direitos Humanos e Democracia. Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná. Visiting Researcher no Instituto Max Planck para Direito Público Internacional e Direito Comparado, Heidelberg. Membro da Rede ICCAL Brasil. Professora de Direitos Humanos e Direito Constitucional. Autora do livro Pluralismo no Ius Constitucionale Commune na América Latina: Diálogos Judiciais sobre Direitos Humanos.

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Doctor en Derecho por la Universidad Complutense de Madrid. Especialista en Derecho Constitucional por la Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), y en Derecho Constitucional y Ciencia Política por el Centro de Estudios Políticos y Constitucionales (Madrid). Licenciado en Derecho por la Universidad Autónoma de Guerrero (México). Es Investigador Nacional nivel I del Sistema Nacional de Investigadores del Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología (CONACYT, México). En representación de México es miembro del Grupo de Justicia Constitucional y Derechos Fundamentales del Programa Estado de Derecho para Latinoamérica de la Fundación Konrad Adenauer.