A Anistia Ainda Está Aqui: Reflexões Acerca da ADPF 153 a partir do Filme “Ainda Estou Aqui”
27 de Febrero de 2025

O filme “Ainda Estou Aqui” conquistou o mundo e se tornou o primeiro filme brasileiro a ser indicado para o principal prêmio do Oscar. Nesse artigo, Mônia Leal discute as circunstâncias jurídicas que atrasam justiça para vitimas de desaparecimento forçado como as retratadas no filme.
O filme “Ainda estou aqui” é o primeiro filme brasileiro na história a ser indicado ao Oscar de Melhor Filme. A obra relata a trajetória da família do ex-Deputado Rubens Paiva após o seu desaparecimento nos “porões” da Ditadura Militar brasileira (1964-1987) e é baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho da vítima. O seu mérito, entretanto, vai além do que simplesmente promover a cultura nacional. Ele serve, em grande medida, também como uma forma de reparação e de construção da memória, em um país onde ainda há avenidas, praças e escolas com nomes de Presidentes do período autoritário; onde a “Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça” teve seu importante trabalho ofuscado e pouco divulgado; onde milhares de pessoas acamparam, recentemente, em frente a quartéis do Exército, clamando por intervenção das Forças Armadas para garantir a regularidade das eleições (no caso, para impedir que o resultado das urnas fosse considerado válido, colocando sob ameaça todo o sistema eleitoral) e invadindo, na sequência, a sede dos Poderes da República, nos atos antidemocráticos de “8 de janeiro de 2023”.
O próprio Supremo Tribunal Federal, ao proferir o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 153, sobre a constitucionalidade da Lei de Anistia, mesmo após a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund , relativo aos crimes de desaparecimento forçado ocorridos durante a ditadura, utilizou, à época, um diálogo neutralizador com o órgão interamericano, sustentando, em diferentes votos, que “o caso brasileiro é diferente”, desconsiderando, assim, a firme jurisprudência assentada no sentido de incompatibilidade democrática de qualquer das formas de anistia.
A ADPF 153/DF, julgada em 29 de abril de 2010, tinha por objeto a compatibilidade do artigo 1º, §1º, da Lei nº 6.683 (Lei de Anistia) com a Constituição Federal de 1988. A ação foi ajuizada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), com o intuito de obter interpretação conforme do referido dispositivo, a fim de excluir da anistia os crimes comuns cometidos contra opositores políticos no contexto da ditadura militar (ex.: crimes de homicídio, tortura, estupro, ocultação de cadáver, entre outros).
A primeira vez em que a Corte IDH é mencionada na decisão consta no voto do Ministro Relator Eros Grau, tratando-se, na realidade, de uma citação indireta, no sentido de que a jurisprudência interamericana sobre a matéria não se aplicaria aos crimes anistiados pela Lei nº 6.683/1979, uma vez que a competência da Corte regional somente haveria sido reconhecida pelo Brasil para julgamento de fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998 (Decreto nº 4.463/2002). Tal interpretação não se coaduna, no entanto, com os standards amplamente consolidados, que reconhecem o caráter permanente do crime de desaparecimento forçado de pessoas, de modo que, enquanto não forem localizadas as suas vítimas, o crime persiste. Além disso, não foi realizado controle de convencionalidade da lei questionada, quando já havia jurisprudência farta sobre a matéria, no sentido de considerar inconvencionais as leis que anistiaram crimes comuns no contexto das ditaduras militares.
Outra menção à Corte IDH foi feita no final do voto do Ministro Ricardo Lewandowski, que assumiu posição divergente da proferida pelo Relator, referindo que os Estados signatários da CADH têm o dever de investigar, ajuizar e punir as violações graves aos direitos humanos, sendo que o descumprimento dessa obrigação configura uma violação à Convenção, gerando responsabilidade internacional do Estado, em face da ação ou omissão de quaisquer de seus Poderes ou órgãos. O julgador votou pela parcial procedência da ação, dando interpretação conforme ao § 1º do art. 1º da Lei 6. 683/1979, excluindo de sua abrangência a prática de crimes comuns não conexos aos crimes políticos praticados pelos agentes do Estado no contexto da ditadura militar. A fundamentação utilizada foi alinhada com o corpus iuris interamericano, sendo que a jurisprudência da Corte IDH integrou a ratio decidendi. O Ministro Lewandowski foi, porém, voto vencido.
Outro que mencionou o direito convencional interamericano – de um total de onze integrantes que compõem o Pleno do Supremo Tribunal Federal – foi o Ministro Celso de Mello, que seguiu a linha do Relator, no sentido de considerar a lei de anistia compatível com a nova ordem constitucional. Inicialmente, reconheceu que a Corte IDH, em diversos julgamentos – como, por exemplo, nos casos contra o Peru (“Barrios Altos”, em 2001, e “Loayza Tamayo”, em 1998) e contra o Chile (“Almonacid Arellano e outros”, em 2006) – proclamou a absoluta incompatibilidade, com os princípios consagrados na Convenção Americana de Direitos Humanos, das leis nacionais que concederam anistia, unicamente, a agentes estatais, as denominadas “leis de auto-anistia”. Após, contudo, argumentou que o caso brasileiro era diferente, em razão do caráter bilateral que marca a Lei nº 6. 683/1979. Para ele, a lei brasileira não pode ser qualificada como uma lei de auto-anistia, tornando inaplicáveis, para o caso, os precedentes da Corte IDH. Por fim, acompanhando o Relator, entendeu que o Brasil somente reconheceu a competência da Corte IDH para apreciação de fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998, adotando, assim, uma interpretação neutralizadora da jurisprudência interamericana.
Note-se, porém, que a lei de anistia chilena (Decreto Ley 2191/1978) também concedeu perdão de crimes cometidos por integrantes de ambas as forças políticas daquele período histórico e ainda excluiu da anistia diversos crimes (tais como parricídio, infanticídio, estupro, entre outros). Nem por isso o país foi absolvido no caso “Almonacid Arellano”, pois, segundo a Corte IDH, “não se pode conceder anistia aos crimes de lesa humanidade”.
A Corte IDH deixa claro, inclusive, ser indiferente se se trata de uma auto-anistia ou não, pois o que realmente confirma o desrespeito ao corpus iuris interamericano não é o modus ou poder de onde a lei emana, mas sim a sua finalidade de anistiar crimes contra a humanidade.
Tal desconformidade foi confirmada, inclusive, por ocasião da condenação do Brasil no “Caso Gomes Lund e outros vs. Brasil”, havendo a decisão do STF sido expressamente repreendida pela Corte IDH, por não haver observado o seu dever de promover o controle de convencionalidade.
É preciso considerar, no entanto, apesar desse cenário, que, de 2010 para cá, houve significativa mudança na composição do Supremo Tribunal Federal, assim como também avanços significativos no diálogo com a Corte IDH , permitindo imaginar que, hoje, talvez se pudesse esperar um resultado de julgamento diferente.
Ainda assim, não se pode desconsiderar que, assim como o filme retrata, com muita sensibilidade, a luta da esposa de Rubens Paiva, Eunice, para obter o reconhecimento, pelo Estado, do desaparecimento de seu marido, com a consequente emissão de seu atestado de óbito, após transcorridos mais de trinta anos sem qualquer notícia ou informação, em certa medida a história recente do Brasil tem mostrado que, de alguma maneira, enquanto sociedade, ainda “estamos todos aqui”, precisando dimensionar a real extensão do que ocorreu no passado, para que possamos consolidar nosso futuro e a democracia.
Citação acadêmica sugerida: Leal, Mônia Clarissa Henning. A Anistia Ainda Está Aqui: Reflexões Acerca da ADPF 153 a partir do Filme “Ainda Estou Aqui a. Agenda Estado de Derecho, 2025/02/27. Disponível em: https://agendaestadodederecho.com/a-anistia-ainda-esta-aqui-adpf-153/
Palavras-chave: Anistia, Convencionalidade, Ditadura, Justiça de Transição
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Pós-Doutorado na Ruprecht-Karls Universität Heidelberg (Alemanha) e Doutorado em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, com pesquisas realizadas junto à Ruprecht-Karls Universität Heidelberg, na Alemanha. Docente permanente e ex-coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. Membro do Conselho Superior (2014-2019) e Coordenadora do Comitê de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul – FAPERGS (2022-2024). Coordenadora científica e representante brasileira do grupo de especialistas do “Programa Estado de Derecho para Latinoamerica”, da Fundação Konrad Adenauer, com sede em Bogotá (Colômbia). Membro da Rede ICCAL-Brasil, vinculada ao Instituto Max Planck de Direito Internacional Público e Comparado, de Heidelberg, Alemanha.